Mendigo é aquele que pede esmola pra
viver; mendicante, pedinte. Esmola é aquilo que se dá aos necessitados, isso
segundo o dicionário, porem nem todos os necessitados são mendigos, e nem todos
os mendigos são necessitados. Por vezes apenas sonharam... Alto de mais.
Faziam parte da paisagem daquelas ruas do centro o Mendigo e seus camaradas,
sedentos por cachaça e com alguns cigarros de tabaco e
cânhamo. A bebida era para eles o elixir da juventude, e os cigarros um incenso
para afastar os maus espíritos, desencarnados e principalmente encarnados. Não
tinham um tostão furado e andavam com roupas sujas, o que não era um problema
já que sonhar sempre é de graça quando se sabe pedir uma carona ao cobrador de
ônibus em São Paulo.
As avenidas barulhentas e cheias de
gente cinza e opaca surrupiam as horas como os corredores alegres de uma escola secundária. E o Mendigo vaga por aí a pé,
descalço ou de trem, mas a noite está sempre na mesma praça. Praça moderna,
iluminada e limpa, mesmo durante a noite está cheia de crianças. Parece uma escola secundária.
Há pouco tempo a Praça havia sido demolida e totalmente reconstruída. O motivo?
Dava muito mendigo.
A Praça é o primeiro degrau da rua, que é como uma escada para o sono. Quanto mais o mendigo bebe,
mais rápido ele sobe. O caminho-subida é como um vale de história assombrada,
em festa. Cheio de maus espíritos desencarnados e principalmente encarnados.
Quando acaba a subida o mendigo está no céu, mas ele não se sente em casa no
paraíso.
As nuvens são vitrines impecáveis, polidas o dia todo por negras mãos,
sustentadas por um par de pernas encoxadas durante três horas em ônibus, trem e
metrô para chegar do Cantinho do Céu no Grajaú, até o Céu no Centro. Há belas paisagens no céu. A que o Mendigo mais gosta é
um grande templo vermelho que abriga diferentes tribos de
mendigos alegres e tristes, porem sempre festivos. Munidos de violas, cachaça e
incenso.
A noite custa a terminar como um sonho ruim, que se quer escapar e sentir algum
alívio. Neste momento de agonia que é o único momento do dia em que o mendigo
pensa no que fez, no que faz e no que poderá fazer, e depois de suas
considerações ele quer por fim, a noite.
Acredita estar preso num sonho lúcido, que
não é real, mas se escolhe o que faz. Às vezes tem cara de pesadelo, pesadelo
lúcido. Acredita que é culpa de uma maldita, funesta e condensada fumaça branca
que polui a cidade e que os mendigos costumam inalar com frequência. Então bebe
mais. A bebida alivia a tensão da fumaça. Alivia a eletricidade e ânsia de não
ter pra onde ir. Então começa a o caminho de volta. Imagina-se rolando para chegar mais de pressa à Praça.
A descida é um alivio, parecido com o sinal barulhento da escola secundária
anunciando o fim do período. Cada gole tomado o deixou mais leve e pronto para o sono. O mendigo vai e
volta sempre na boa companhia de seus
camaradas, eles guardam um aos outros. O tédio e o cansaço fizeram com que
fossem rápidos, e chegaram antes do sol ao albergue. Não ligam para as regras e
invadem o recinto como de costume, falando alto, fedendo tabaco e maconha,
bebendo cachaça. A viola faz um ruído e é rapidamente repreendida pelos demais:
— Shhhhh...
— Shhhhh!! — Alguns levam os dedos inchados de unhas amarelas aos lábios e
enfatizam — Shhhhh!!!!!!!
A vizinhança está acostumada. Os mendigos vão dormir.
O sol há tempos já
ultrapassou a altura das janelas, então não sabem que horas são. Há papelão, colchões e retalhos de espuma espalhados por todos
os cantos, mendigos dormindo direto no concreto e muitos cinzeiros, cinzeiros
cheios e cinzeiros virados, espalhando o pó. Copos-cinzeiro, pratos-cinzeiro,
garrafas-cinzeiro, tampas-de-pizza-cinzeiro. Roupas sujas e roupas velhas,
panfletos, jornais, sacos de lixo,
lixo espalhado. Um quarto qualquer. Um lar.
O Mendigo está bolando um cigarro com bitucas, e um dos camaradas, Rauzito, já
apanha a viola e começa afinadamente desafinado:
— Somente conhecendo a beleza da união...
— É que a gente tem a força... — Um outro do outro canto também começa a
cantar.
—
Para não, não se enganar! — Os que ainda estão acordados compõem o coro de uma
bela cantiga de ninar. E não só aqui, mas em qualquer canto da cidade...
Mendigos dormem.
Texto por João Pedro Nardy com (o bedelho de) Felipe Diaz
Arte por Alyson Cavalcantti
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